Aproveitando duas crónicas antigas sobre esta região resolvi aqui fazer uma só, dado o espaço generosamente oferecido pelo nosso amigo Sérgio.
Há uns anos atrás tive a rara oportunidade de participar numa apresentação de vinhos da região de Côtes du Rhône que decorreu na Quinta de Nápoles, navio almirante da casa Niepoort e organizado por este incansável e apaixonado do vinho chamado Dirk van der Niepoort, que aproveitou e muito bem para, mais uma vez, promover o grupo de produtores autodenominado de Douro Boys (isto apesar de alguns terem idade para serem meus pais… ou quase!) que produzem dos melhores vinhos que se fazem na região ano após ano.
Mas esta crónica não é para aclamar este grupo que bem o merece, mas sim para falar de uma região quase desconhecida dos portugueses, mas que foi o berço de duas das mais aclamadas castas a nível mundial, a Viognier nos vinhos brancos e a muito mais elogiada e conhecida Syrah (muitas vezes escrita Shiraz) nos vinhos tintos.
A Viognier é uma casta que origina vinhos encorpados e que aceita bem o estágio em barricas de carvalho, apesar de o não exigir, com uma propensão elevada para ter um teor alcoólico elevado, não é fácil encontrar vinhos desta casta com menos de 13% de vol. de álcool e que tem a particularidade de ser muito sensível na fase final da maturação, dado que com facilidade perde os sabores característicos a fruta (alperce, pera, flores…) e se a uva for colhida demasiado cedo pode perder esses mesmos aromas, se for colhida demasiado tarde perde a acidez e dará origem a vinhos desinteressantes! A região onde melhor esta casta se expressa é uma pequena área na zona norte da região chamada Condrieu onde apenas se produzem vinhos brancos. Analogamente existe também uma pequena região nessa zona que só produz tintos com a casta Syrah e se designa Côte-rôtie, mesmo se por vezes apresentem uma pequena quantidade de Viognier, sendo estes provavelmente os vinhos mais caros da região, com valores a superar com facilidade a centena de euros.
Quero antes de mais, falar de algo que durante a prova me deixou chocado dada a estonteante semelhança apresentada com os vinhos verdes tintos e a custarem acima dos quarenta euros! É verdade que essa característica só se mantém enquanto jovens, mas ainda assim fiquei estupefacto! Nunca me passaria pela cabeça que estes vinhos pudessem ser tão difíceis enquanto novos. Apresentam uma acidez impressionante, com taninos muito evidentes e adstringentes, deixando-nos a boca a saber a papel de música, como se costuma dizer quando ela fica seca. Paradoxalmente, depois de termos acabado de beber…
Nesta apresentação, um produtor, consciente dessa característica apresentou uma série de vinhos de diferentes anos que nos permitiu fazer uma prova vertical verdadeiramente educativa ainda que não entusiasmante. Ele sabe que o marketing ajuda, mas tem uma clara noção de como os vinhos dele evoluem e não se coíbe, mesmo gastando algumas centenas de euros de o mostrar. Não é por acaso que os franceses, mesmo não tendo os vinhos mais entusiasmantes do planeta são claramente os melhores vendedores acrescentando-lhe uma auréola de exclusividade difícil de resistir… é que não deixa de ser notável que sendo a casta Syrah uma casta tão fácil de apresentar de uma forma harmoniosa e de gosto consensual eles não sigam esse caminho, porventura por saberem que esse campeonato estaria perdido à partida para a Austrália, Estados Unidos ou Chile.
Mas debrucemo-nos um pouco sobre esta velha região, Côtes du Rhône, de vinhos essencialmente tintos.
De uma forma um pouco simplista devemos começar por separar a região em duas, a zona norte (ou septentrionale como os franceses lhe chamam), mais montanhosa, que começa pouco abaixo de Lyon e a zona sul (ou méridionale) onde o rio Rhône se espraia pelas planícies da Provença.
A zona norte produz apenas uns dez por cento do total, mas é aqui que estão os vinhos mais caros da região. Aqui temos uma política de quase casta única. De facto nesta região a Syrah (ou Shiraz como os anglófonos gostam de dizer) reina de uma forma absoluta e os tintos ou são 100% da casta ou têm uma pequena percentagem de uma casta branca, a Viognier. Algo estranho, mas não tão incomum assim, até por terras portuguesas num passado não muito remoto. Mas ficarão por certo surpreendidos se vos disser que o objetivo é o de fixar a cor e não, como inicialmente pensei, o de amaciar um pouco o vinho dado o caráter untuoso da Viognier. Nas brancas a Viognier é usada a solo em Condrieu mas junta-se à Marsanne e à Roussanne quando descemos um pouco em direção ao sul. As duas outras regiões muito famosas desta zona norte, produzindo apenas vinho tinto, são Côte-Rôtie e Hermitage, onde um hectare de vinha pode vale qualquer coisa como um milhão de euros. Coisa pouca não andassem os euros tão arredios…
Já falamos um pouco do carácter dos vinhos da região norte e por isso vou agora concentrar-me na zona sul, onde são produzidos a grande maioria dos vinhos desta zona. A primeira vez que me lembro de ter bebido um vinho desta zona veio quase de certeza desta sub-região e lembro-me que me foi particularmente agradável pois apesar de ser muito jovem na altura, memorizei para sempre o nome da região. Teria provavelmente 20 anos e bebi-o na casa de uns simpáticos emigrantes portugueses em Saint-Etiénne, onde era consumido diariamente. Mais tarde percebi o porquê da escolha. Bom preço e muito provavelmente com os tintos mais parecidos com os vinhos portugueses.
Nesta região o número de castas passíveis de serem utilizadas é muito maior que o permitido nas mais reputadas regiões francesas, com destaque nas tintas para a Grenache Noir, Syrah, Mourvèdre, Terret Noir, Carignan e Cinsault e nas brancas para a Grenache Blanc, Clairette Blanche, Marsanne, Roussanne, Bourboulenc e Viognier. Assim, não é de estranhar que existam uma grande variedade de estilos na região e inclusive um dos mais famosos rosés de França, produzido numa pequena sub-região chamada Tavel. De todas as sub-regiões, e são bastantes, a mais famosa é sem sombra de dúvidas Châteauneuf-du-Pape, não só por ter sido aqui que o Papa dissidente assentou arraiais, mas porque sistematicamente alguns destes vinhos são classificados pelas melhores revistas mundiais com pontuações acima dos 96 pontos em 100 possíveis. Nos últimos tempos tenho consolidado a ideia de ser aqui que se produzem os meus vinhos preferidos da região, sejam eles tintos sejam brancos, que ao contrário dos que são feitos exclusivamente com Viognier, têm uma capacidade impressionante de evolução em garrafa originando vinhos que me deixam absolutamente extasiado. A Grenache ocupa já mais de 40% dos vinhedos em Châteauneuf-du-Pape e não é de admirar pois que seja ela que está por detrás de quase todos os vinhos tintos desta região dando, no entanto, origem a vinhos muito diferentes entre si. De vinhos leves e aromáticos a vinhos encorpados e fechados, de tudo é possível encontrar, talvez por a legislação nesta zona ser muito pouco apertada e permitirem grandes produções por hectare.
Já agora, se quiserem provar bons vinhos desta última casta, bastará ir ao norte de Espanha, de preferência ao Priorat se o bolso assim o permitir, e provar os vinhos feitos de Garnacha Tinta.
Hildérico Coutinho (Escanção / Sommelier)