Escolhi recentemente um vinho
destes para acompanhar uma sobremesa num jantar, por mim organizado, com prova
cega. Apesar de saber da curiosa falta de hábito em Angola de acompanhar as
sobremesas com vinho, necessariamente doce ao contrário do que por vezes se
ouve, não deixei de ficar admirado por apenas duas ou três pessoas, uma delas
não conta, era a minha mulher, terem detetado tratar-se de um Late Harvest ou, se quisermos, em
português, Colheita Tardia. Eu disse curioso, mas na verdade é surpreendente
sabendo o quanto as coisas doces são por aqui apreciadas, aliás não será por
acaso só por aqui ter ouvido a expressão “está doce” querendo dizer que o
momento está agradável.
Curiosas e bem ajustadas são também
as palavras do crítico e sommelier australiano Matt Skinner, "os vinhos
doces são um pouco como bateristas: tecnicamente brilhantes, mas muito
frequentemente ofuscados pelo resto da banda".
Existem muitas formas de fazer
estes vinhos, desde a sua forma mais simples, que é o de deixar passar o seu
momento habitual de colher, daí o nome destes vinhos, e esperar que as uvas
fiquem um bocado mais desidratadas e próximas daquilo que é uma uva passa.
Estas uvas têm muito menos sumo e por isso a quantidade de açúcar em cada litro
é muito superior ao normal e dariam origem, se todo o açúcar fosse transformado
em álcool, a vinhos com graduações altíssimas. Não é isso que fazem e é por
isso que estes vinhos são sempre doces. Quando, durante o processo de
fermentação, o vinho atinge uma graduação entre os 8 e os 12 por cento de
álcool, ela é usualmente interrompida. Poderá por vezes ter menos e outras
vezes mais, mas não é muito usual. Não são por isso vinhos muito alcoólicos, como
é o caso dos fortificados, sendo também por isso vinhos menos impactantes.
Existem outros vinhos que poderiam
ser também considerados como Colheitas Tardias, de que falarei em outras
crónicas, nesta irei apenas falar dos talvez mais interessantes vinhos deste
género, os chamados vinhos “botrytizados”, uma palavra inventada para
distinguir os vinhos afetados pelo fungo Botrytis
Cinerea dos outros. É que este fungo, causador da podridão cinzenta em
muitos vegetais e nas uvas também, se as atacar antes do tempo, pode em
determinadas alturas dar origem à “Podridão Nobre”. Neste caso e apesar do
aspeto deplorável das uvas, o resultado é um vinho único que pode atingir
níveis de perfeição inalcançável para os colheitas tardias sem podridão nobre. A
descoberta deste modo de fazer vinho é atribuída aos monges beneditinos que em
1755 habitavam o Schloss Johannisberg. O emissário que tinha ido obter a
permissão para colher as uvas atrasou-se várias semanas. Quando voltou as uvas
estavam quase todas podres. Os monges que já tinham ouvido falar, eventualmente
experimentado, vinhos onde algumas uvas estavam afetadas pela podridão nobre
resolveram ainda assim avançar para a produção do vinho. Foi assim feito
oficialmente pela primeira vez um spätlese,
significando colheita tardia e tornando-se uma das categorias nos vinhos de
qualidade, dando origem a uma verdadeira revolução na forma como se faz vinho
na Alemanha. Este processo foi sendo melhorado e exportado para outras regiões europeias
com destaque para a França, Hungria e Áustria. Na Alemanha e já agora na
Áustria mas com menos notoriedade, o vinho mais conceituado tem o sugestivo
nome de Trockenbeerenauslese e
podendo uma singela garrafinha de 375 ml custar algumas centenas de euros.
França é o país que continua a
garantir a produção do que melhor se faz neste domínio, com destaque para a
região de Sauternes, mas também para a região do Loire onde se fazem vinhos
doces com a casta Chenin Blanc absolutamente deliciosos e com a vantagem de
serem mais baratos por serem bem menos conhecidos. Mas foquemo-nos em
Sauternes, uma sub-região de Bordéus, que tem como ícone o famoso Château
d’Yquem e como guardas de elite nomes como Château Riussec, Château Climens, Château
Coutet, Château La Tour-Blanche ou Château Doysi-Dubroca. Estes produtores têm
usualmente o cuidado de apenas recolher os cachos das uvas completamente afetados
pelo fungo. Se necessário mais de meia dúzia de passagens na vinha são
efetuadas para o garantir. A casta Semillon, conhecida no Douro por Boal, é a
mais utilizada na região, com mais de 80% dos vinhedos, até por ser a mais
propensa a ser atacada pelo fungo, graças à sua fina pele, mas também a
Sauvignon Blanc e a Muscadelle têm o seu papel importante no resultado final.
Os melhores vinhos têm uma incrível capacidade de evolução em garrafa, ficando
cada vez mais concentrados em aromas, sabor e açúcar. A sua elevada acidez
impede estes vinhos de se tornarem enjoativos. 2001 foi o ano recente de melhor
qualidade que tive a oportunidade de provar.
A Hungria tem em Tokaji, uma das
mais antigas regiões do mundo, a produção de um dos melhores vinhos deste
género designados por Tokaji Aszú, com o número de puttonyos a indicar o grau
de doçura que o vinho terá, sendo que 3 é o mínimo e 6 o máximo. Antigamente, a
cada 136 litros de vinho seco, eram adicionados baldes de 20 quilogramas, os
puttonyos, de uvas afetadas pela podridão nobre. Atualmente existem intervalos
bem definidos que cada classificação tem de respeitar. Os 3 Puttonyos, por exemplo
têm de ter entre 60 e 90 gr/l de açúcar. Já o 6 Puttonyos terá de ter entre 150
e 180 gr/l de açúcar. Acima destes, em termos de açúcar residual e a
ultrapassar os 200 gr/l, estão os Aszú Essencia, produzidos exclusivamente com
uvas podres. As principais castas utilizadas são autóctones e têm os sugestivos
nomes de Furmint e Hárslevelü. A minha experiência leva-me a preferir muitas
vezes os 5 em detrimento dos mais doces e mais caros vinhos desta região, sendo
que o número de anos que o vinho tem seja igualmente determinante, pois tal
como com os vinhos de Suaternes, também estes vinhos possuem a sempre boa
característica de evoluírem muito bem em garrafa.
Hildérico Coutinho (Escanção / Sommelier)