sábado, 14 de maio de 2016

Opinião: Aprendendo e Partilhando - Colheitas Tardias


Escolhi recentemente um vinho destes para acompanhar uma sobremesa num jantar, por mim organizado, com prova cega. Apesar de saber da curiosa falta de hábito em Angola de acompanhar as sobremesas com vinho, necessariamente doce ao contrário do que por vezes se ouve, não deixei de ficar admirado por apenas duas ou três pessoas, uma delas não conta, era a minha mulher, terem detetado tratar-se de um Late Harvest ou, se quisermos, em português, Colheita Tardia. Eu disse curioso, mas na verdade é surpreendente sabendo o quanto as coisas doces são por aqui apreciadas, aliás não será por acaso só por aqui ter ouvido a expressão “está doce” querendo dizer que o momento está agradável.

Curiosas e bem ajustadas são também as palavras do crítico e sommelier australiano Matt Skinner, "os vinhos doces são um pouco como bateristas: tecnicamente brilhantes, mas muito frequentemente ofuscados pelo resto da banda".

Existem muitas formas de fazer estes vinhos, desde a sua forma mais simples, que é o de deixar passar o seu momento habitual de colher, daí o nome destes vinhos, e esperar que as uvas fiquem um bocado mais desidratadas e próximas daquilo que é uma uva passa. Estas uvas têm muito menos sumo e por isso a quantidade de açúcar em cada litro é muito superior ao normal e dariam origem, se todo o açúcar fosse transformado em álcool, a vinhos com graduações altíssimas. Não é isso que fazem e é por isso que estes vinhos são sempre doces. Quando, durante o processo de fermentação, o vinho atinge uma graduação entre os 8 e os 12 por cento de álcool, ela é usualmente interrompida. Poderá por vezes ter menos e outras vezes mais, mas não é muito usual. Não são por isso vinhos muito alcoólicos, como é o caso dos fortificados, sendo também por isso vinhos menos impactantes.

Existem outros vinhos que poderiam ser também considerados como Colheitas Tardias, de que falarei em outras crónicas, nesta irei apenas falar dos talvez mais interessantes vinhos deste género, os chamados vinhos “botrytizados”, uma palavra inventada para distinguir os vinhos afetados pelo fungo Botrytis Cinerea dos outros. É que este fungo, causador da podridão cinzenta em muitos vegetais e nas uvas também, se as atacar antes do tempo, pode em determinadas alturas dar origem à “Podridão Nobre”. Neste caso e apesar do aspeto deplorável das uvas, o resultado é um vinho único que pode atingir níveis de perfeição inalcançável para os colheitas tardias sem podridão nobre. A descoberta deste modo de fazer vinho é atribuída aos monges beneditinos que em 1755 habitavam o Schloss Johannisberg. O emissário que tinha ido obter a permissão para colher as uvas atrasou-se várias semanas. Quando voltou as uvas estavam quase todas podres. Os monges que já tinham ouvido falar, eventualmente experimentado, vinhos onde algumas uvas estavam afetadas pela podridão nobre resolveram ainda assim avançar para a produção do vinho. Foi assim feito oficialmente pela primeira vez um spätlese, significando colheita tardia e tornando-se uma das categorias nos vinhos de qualidade, dando origem a uma verdadeira revolução na forma como se faz vinho na Alemanha. Este processo foi sendo melhorado e exportado para outras regiões europeias com destaque para a França, Hungria e Áustria. Na Alemanha e já agora na Áustria mas com menos notoriedade, o vinho mais conceituado tem o sugestivo nome de Trockenbeerenauslese e podendo uma singela garrafinha de 375 ml custar algumas centenas de euros.

França é o país que continua a garantir a produção do que melhor se faz neste domínio, com destaque para a região de Sauternes, mas também para a região do Loire onde se fazem vinhos doces com a casta Chenin Blanc absolutamente deliciosos e com a vantagem de serem mais baratos por serem bem menos conhecidos. Mas foquemo-nos em Sauternes, uma sub-região de Bordéus, que tem como ícone o famoso Château d’Yquem e como guardas de elite nomes como Château Riussec, Château Climens, Château Coutet, Château La Tour-Blanche ou Château Doysi-Dubroca. Estes produtores têm usualmente o cuidado de apenas recolher os cachos das uvas completamente afetados pelo fungo. Se necessário mais de meia dúzia de passagens na vinha são efetuadas para o garantir. A casta Semillon, conhecida no Douro por Boal, é a mais utilizada na região, com mais de 80% dos vinhedos, até por ser a mais propensa a ser atacada pelo fungo, graças à sua fina pele, mas também a Sauvignon Blanc e a Muscadelle têm o seu papel importante no resultado final. Os melhores vinhos têm uma incrível capacidade de evolução em garrafa, ficando cada vez mais concentrados em aromas, sabor e açúcar. A sua elevada acidez impede estes vinhos de se tornarem enjoativos. 2001 foi o ano recente de melhor qualidade que tive a oportunidade de provar.

A Hungria tem em Tokaji, uma das mais antigas regiões do mundo, a produção de um dos melhores vinhos deste género designados por Tokaji Aszú, com o número de puttonyos a indicar o grau de doçura que o vinho terá, sendo que 3 é o mínimo e 6 o máximo. Antigamente, a cada 136 litros de vinho seco, eram adicionados baldes de 20 quilogramas, os puttonyos, de uvas afetadas pela podridão nobre. Atualmente existem intervalos bem definidos que cada classificação tem de respeitar. Os 3 Puttonyos, por exemplo têm de ter entre 60 e 90 gr/l de açúcar. Já o 6 Puttonyos terá de ter entre 150 e 180 gr/l de açúcar. Acima destes, em termos de açúcar residual e a ultrapassar os 200 gr/l, estão os Aszú Essencia, produzidos exclusivamente com uvas podres. As principais castas utilizadas são autóctones e têm os sugestivos nomes de Furmint e Hárslevelü. A minha experiência leva-me a preferir muitas vezes os 5 em detrimento dos mais doces e mais caros vinhos desta região, sendo que o número de anos que o vinho tem seja igualmente determinante, pois tal como com os vinhos de Suaternes, também estes vinhos possuem a sempre boa característica de evoluírem muito bem em garrafa.

Hildérico Coutinho (Escanção / Sommelier)

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