sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Um copo com... Hugo Mendes

Hugo Mendes é o enólogo da Quinta da Murta, na região de Bucelas (Lisboa), onde desde 2005 mostra o que melhor a casta Arinto pode proporcionar na sua região de origem. Carismático, colabora nos projetos (Quinta das Carrafouchas e Vale das Areias) para além de ser o criador do blogue The Wizard Apprentice, onde assume a vocação para “winemaking evangelist” Natural e residente na cidade de Santarém, fugiu à investigação cientifica que a sua formação em Engenharia Biotecnologia faria antever, para se refugiar na pacatez das adegas e no mundo mágico da enologia.


1. Olá Hugo, conta-nos por favor o teu percurso no mundo dos vinhos. Como tudo nasceu e quais os planos para o futuro.Resumidamente. Sempre fui um entusiasta da ciência, sempre quis ser cientista. Talvez por isso sempre me tenha sentido mais atraído para perceber a forma como as coisas funcionam do que pelo apreço das coisas em si. No vinho foi diferente, atraem-me as duas partes. Gosto das coisas do vinho desde a adolescência, mas tratava disso como um hobby, nunca tive pretensões a trabalhar na área. O meu objectivo era ganhar um prémio nobel pela descoberta da cura para o cancro.

Contudo, já entrei para a faculdade com 23 anos e quando estava a terminar comecei a pensar que talvez fosse velho para iniciar uma carreira científica séria. Também não estava com muita vontade de trabalhar fora de Portugal, por isso olhei em volta e a hipótese óbvia foi o vinho. Um facto curioso desse tempo, todos os livros da minha eno biblioteca (nesses dias ainda muito parca em títulos) eram técnicos, não tinha nenhum sobre prova ou apreciação de vinho. Todos eram sobre os segredos da arte.

Decidi fazer uma vindima para ver se realmente gostava daquilo. Fui para a Quinta da Alorna. O primeiro ano da Martta Simões lá (2004) que, juntamente com o Nuno Cancela de Abreu me fizeram perceber que era nisto que queria trabalhar. Além disso, tinha a real sensação de que há muito ainda por fazer neste meio. Sou um tipo de desafios. Adoro pegar em coisas difíceis e leva-las a bom porto. Sou viciado nas fazes de desenvolvimento e crescimento de uma empresa. 

Depois foi rápido. Vim para a Murta como adegueiro/analista e fui aprendendo o que podia, ensaiando e testando muito e naturalmente fui ganhando o meu espaço. Com o tempo e os vinhos (julgo) foram aparecendo as oportunidades de me juntar a outros projecto enquanto consultor de enologia. 

Estou numa fase de mudança. A Quinta da Murta atingiu a fase de cruzeiro no que às questões de enologia diz respeito. È hoje um produtor maduro com conhecimentos muito sólidos do seu terroir, da sua uva e da sua filosofia de produção. Desta forma, no futuro próximo vejo-me a dar uma ajuda mais efectiva na consolidação dos outros produtores onde estou envolvido. Estou também a preparar vinhos para dois projectos, um em nome individual e outro em parceria com o meu bom amigo Ricardo Ramos. Possivelmente aceitarei mais um ou dois projectos que sejam igualmente desafiantes. Há ainda o Inspira Portugal que se prepara para arrancar com um fôlego novo e uma cadência certa.

Para já é isso. Logo que tudo esteja a andar, há muita ideia ainda para sair da gaveta!

2. Tenho bebido ultimamente vinhos produzidos de Arinto, com alguns anos e com uma notável boa evolução e complexidade. Não apenas em Bucelas, mas por exemplo na região dos vinhos verdes ou na Bairrada, entre outros. Achas que é a melhor e mais versátil uva branca do país?Não gosto desses títulos. São muito perigosos. È uma casta muito versátil e fiável sem dúvida. É muito amiga do viticólogo e do enólogo e pode originar vinhos maravilhosos ou ser uma peça chave na sua composição. Merece ser tratada com respeito e tem a sua máxima expressão quando não se força a ter aromas inexistentes ou a fazer vinhos prontos a beber de imediato. 

3. O que gostas de fazer nos tempos livres?
Lêr é a minha paixão. Se alguém me pagasse só para ler… Gosto de fazer desporto (ténis e corrida). À parte da companhia da família, desfruto cada vez mais do prazer de estar à mesa com os amigos. Não tenho tempo ou disponibilidade financeira para muito mais. Adoro viajar, escrever e fotografar.

4. Descreve as férias dos teus sonhos, onde vais, por quanto tempo e porquê?
Não tenho algo que se possa apelidar de férias de sonho, mas tenho algumas ideias que passam por ai e que gostaria de as ver cumpridas um dia. Gostaria de percorrer o pais todo a pé. Gostaria de fazer visitas de estudo a todos os produtores mencionados no livro “In Search of Bacchus” do George Taber. Gostava de conhecer o Nepal e escalar a montanha. Gostaria de visitar os locais mais isolados e ermos da Terra.

… por ai!

5. Qual tem sido na tua opinião o papel dos bloggers e enófilos apaixonados nos últimos anos para o sector? Presumo que chamas enófilo apaixonado à malta que vai para as redes sociais mostrar o que está a beber (enófilo já pressupõe paixão). Choco-te se te disser que não têm papel nenhum? Ou melhor, têm! Têm tido o papel de tranquilizantes a custo zero para produtores que não entenderam ainda o que é esta coisa da comunicação.

Continuo a ver muito barulho (e cada um está no direito de fazer aquele que quiser, não critico, apenas menciono o facto) mas nada de concreto. Tirando aqueles que apostaram para acções mais concretas e quiseram adicionar algum valor à sua actuação, com a criação de pequenos eventos (para dar um exemplo mais palpável), continuamos com o formato do início. Críticos de vinho “por conta própria” que massajam o ego do enólogo ou do produtor (e eu agradeço todas as massagens que me fazem), mas que não adicionam real valor ao sector. Que se entenda, não estou aqui a defender ou a atacar ninguém. Respeito tudo e quase todos, mas acho que anda tudo “fora de jogo”. No limite concorrem com os críticos profissionais pela atenção dos produtores e não dos consumidores que é quem interessa à produção.

Malta porreira na sua maioria. Fazem com gosto. Mas honestamente… trabalho inócuo. Espero que tenham muito prazer no que fazem, assim não se perde tudo.

6. Conta-nos uma peripécia que tenhas vivido no mundo dos vinhos. Há muitas, talvez as “melhores” ainda não as possa contar. Sou um tipo de humor mordaz e com tendência a estar no local errado à hora certa. Meto-me em sarilhos com facilidade. J

Que tal esta?: http://www.twawine.com/search/label/Est%C3%B3rias


7. Como vês o panorama vínico em Portugal, quais os desafios e oportunidades?
È indiscutível que temos hoje um conhecimento técnico que não tínhamos no passado. Enólogos e Viticólogos estão ao nível do que de melhor se faz no mundo.

Contudo, continua por definir uma estratégia e caminho comum para a identidade de Portugal enquanto produtor de vinho. Precisamos de ser associados a uma ideia.

Nem todos os vinhos que França produz são de grande qualidade (apenas 5% o são), no entanto são o porta estandarte da elevada qualidade e do estilo velho mundo.
No passado achei que não definíamos isso por ignorância. Hoje percebo que é por conivência com a incompetência. Uma estratégia e um caminho iriam exigir responsabilização, tomadas de decisões e criaria bases para uma coisa que os portugueses não gostam. Avaliação. Esta questão varre todos desde a produção à crítica. Para mim, ultrapassar esta pedra no caminho é o grande e primeiro desafio.

Quanto às oportunidades, obviamente saliento a nossa geografia, que nos permite vinhos completamente diferentes mas com muita identidade em locais muito próximos entre si. Há muito tempo que defendo que o turismo de qualidade e de luxo aliado ao enoturismo são o caminho natural para a economia do sector florescer e ajudar à exportação. Quantos mais embaixadores fizermos em nossa casa mais procura os vinhos terão nos mercados de destino. 

8. O que te faz realmente tirar do sério?
Incompetência militante, falta de rigor, molezas em tempos de stress, indecisões, mentira, acções desajustadas da missão e visão dos projectos, facilitismos, malta que acho que a borla é o preço justo para um vinho …

… gente a comer maçã ao pé de mim!

9. Momento: refere uma música preferida; local de eleição e companhia; e claro vinho a condizer. Lá está… Também aqui não posso afirmar que tenho uma música preferida, a música do momento requer sempre harmonização.

Fim de um dia de verão, aquela hora do sol laranja que pinta o céu. Quintal da minha casa na mesa grande de verão. Família e alguns amigos. Estivemos a cozinhar qualquer coisa (os meus amigos têm de ajudar na minha cozinha) e agora estamos sentados à mesa. Ouve-se Mark Knopler, Buika ou alguma outra coisa que tenha assim umas guitarras cruas, mas sem ruido e bebe-se Quinta da Murta colheita 2012 fresquinho.

Tiro muito prazer das combinações simples com carga emocional.

10. Qual o melhor vinho que alguma vez provaste?
Não sei. Sabes que não guardo referências de marcas. Guardo perfis e desconstruções de vinhos. Os vinhos mais icónicos (aqueles cromos de caderneta) provo-os na companhia de outros enófilos e sempre com a pressão de ter de achar qualquer coisa. Não é nesses que encontro aquele que mais prazer me dão. Lembro-me no entanto de uma garrafa de champagne Cristal que me deixou a pensar durante vários dias. Num sentido diferente, a primeira vez que provei um Fernão Pires do Tejo com 20 anos e gostei também me fez repensar muita coisa. Um Cos d'Estournel na sala de prova da adega. Estás a ver a ideia? Vinho ligados a momentos ou que me façam pensar em como são feitos.

Contudo, consigo apontar-te os piores. Numa feira em Londres provei vinhos da India e da Mongólia feitos com castas francesas. Ainda são o top das coisas que menos gostei. 

Sérgio Lopes

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